Dizem que quando você morre, naqueles
segundos finais entre o viver e o morrer, o filme da sua vida passa na sua
cabeça. O cinema e a teledramaturgia já mostraram isso inúmeras vezes: amores, nascimentos dos filhos, grandes e pequenas vitórias rodados em Super8, com as cores amareladas pelo tempo.
Não, eu nunca estive perto de morrer, mas vi
o filme da minha vida, editado sem efeitos especiais, mas com as melhores e
piores cenas, no dia 22 de abril de 2012. Chico Buarque se apresentava no
Centro de Convenções de Recife, e eu, sentada ao lado da amiga de longas datas,
assistia quase sem respirar, como quem tem medo de perder o momento, como quem
tem medo de morrer bem ali, de tanta emoção.
As músicas do Chico foram, e são ainda,
trilha sonora de momentos especiais pra mim, momentos bons e momentos ruins.
Mesmo quando não havia música no ambiente, havia Chico cantando dentro de mim,
e há sempre Chico a embalar tudo o que há de bonito e marcante na minha vida.
Todo vestido de preto, ele entrou no palco
com seu caminhar de menino, com os braços meio pra trás, e abriu o show com O VelhoFrancisco, e eu, ainda
tímida, cantava “Hoje é dia de visita, vem aí meu grande amor”. Meu coração deu
pulos com os versos de De volta ao samba: “Acenda o refletor / apure o tamborim /
aqui é o meu lugar / eu vim”. Do disco novo, cantei a plenos pulmões: “Hoje
afinal conheci o amor / e era o amor uma obscura trama” e cantei também a urgência
de exibir o amor nos versos de Rubato: “mas só se for agora / venha ouvir sem
mais demora a nossa música / que estou roubando de outro compositor”.
Das antigas, Choro bandido, que já ouvi em seresta há tantos anos
atrás: “Mesmo que você fuja de mim / por labirintos e alçapões / saiba que os
poetas como os cegos podem ver na escuridão”.
Do disco novo, a primeira que me conquistou
foi Se eu soubesse, que fez meu coração fazer pom-pom-pom: “Mas acontece que eu sai por
aí e aí la-rá-ri lá-rá-rá”. Tipo um baião quase me fez levantar da cadeira pra melhor cantar os versos mais
coloridos que já ouvi: “É São João / vejo tremeluzir / seu vestido através / da
fogueira. / É carnaval / e seu vulto a sumir / entre mil abadas / na ladeira”.
Mas chorar, chorar mesmo, de cair lágrima,
só mesmo quando Chico cantou Todo sentimento, música que ficou conhecida na interpretação de Verônica Sabino, na
novela Vale Tudo, e que já foi tema de amor na minha vida também: “pretendo
descobrir / no último momento / um tempo que refaz o que desfez / que recolhe
todo sentimento / e bota no corpo uma outra vez”.
“O meu amor tem um jeito manso que é só
seu...” embalou um amor que só agora, com o benefício do tempo decorrido,
consigo ver pelo retrovisor como uma história bonita e delicada.
E aquela adrenalina de ligar pra alguém que
você nem sabe se ainda vai querer te atender, o coração batendo, as pernas
bambas quando se ouve a voz... Quem nunca? “Te ligo ofegante / e digo confusões
no gravador / É desconcertante / rever o grande amor”. Daria pra atualizar a
letra de Anos Dourados trocando ligação por SMS. (E, sim, eu acho que celular deveria ter
bafômetro.)
Não faz muito tempo eu enrubescia ouvindo
uma pessoa especial me dizer como ficava feliz ao me encontrar no trânsito, e
como torcia pelas coincidências das primeiras horas da manhã. Nesse momento,
que era pura delicadeza de dedos entrelaçados, Chico cantava ValsaBrasileira no meu coração:
“rodava as horas pra trás / roubava um pouquinho / e ajeitava o meu caminho /
pra encostar no teu”.
E quantas mil vezes na vida me vi tentando
explicar minha intensidade, meu comportamento colérico com os versos de Baioque?
“Quando eu amo / eu devoro / todo o meu coração / Eu odeio / eu adoro / numa
mesma oração”.
Assim, de verso em verso, vi
minha vida passar num filme, enquanto Chico cantava. Ao invés da morte, no fim
desse túnel, encontrei mais vida, mais amor, mais certeza de que quero muitos e
muitos outros momentos que serão embalados por essa trilha sonora.