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terça-feira, 9 de abril de 2013

Saudade boa meuzóvo

Tudo começou com uma faxina no meio da madrugada. Limpa daqui, limpa dali e nada do sono chegar. Madrugadas insones foram feitas pra decisões estúpidas: "Já sei! Preciso de cor nesse quarto! Tá muito morto, muito plano, muito sem sal". Por mais imbecil que seja a grande conclusão da madrugada - que tentava resolver um coração torcido de saudade  - o fato de ter pelo menos planejado algo já trouxe algum alento. E, meio na marra, o sono veio. Três horas e alguns sonhos intercontinentais depois, levanto, cheia de vontade de encher tudo de cor. Pego ônibus, acerto a parada, acho um edredom multi colorido: fitinhas tipo Senhor do Bonfim, com dizeres super otimistas: bom dia, otimismo, sinceridade, gratidão, felicidade, paz, saúde! "Embrulha, moço, que é esse ai que eu quero na minha cama!"
Caindo de sono, mas me sentindo melhor pela recém aquisição, chego em casa, e abro o enorme edredom na cama. SURPRESA! Tinha uma palavrinha que eu não tinha percebido na loja: saudade. Sim, a palavrinha que me incomoda todo dia estava lá, está ainda aqui, bem do meu ladinho, escrita na listra de cor laranja: SAUDADE. Tirando onda da minha cara, da minha ansiedade, do meu humor.
Antes que você pense aí, na sua cabecinha ufanista e boba, que "saudade só tem em português", digo logo que essa é a maior lorota. Existe o substantivo saudade em turco também. E se duvidar em javanês. Mas, enfim, isso não vem ao caso. O que me irrita é que falem isso como se fosse grande vantagem. Ai, porque que legal que na minha língua existe um nome pra designar essa falta, essa ausência, essa vontade de estar em outro lugar, essa ansiedade pro tempo passar, essa falta de gosto que as coisas têm quando a gente tá longe de quem a gente ama. Saudade boa não existe, minha gente. E quem fala uma besteira dessa nunca sentiu saudade de verdade. E nisso sou categórica. E ninguém tente me convencer do contrário. Ponto. Prego batido e ponta virada. Pegue sua "saudade gostosa" e vá sentir lá na puta que pariu junto com sua "inveja branca", que é outro eufemismo ridículo pra "inveja do caralho".
E eu tô mesmo desbocada e chata, tão chata que eu quase não me aguento. E, sim, eu sinto saudade é porque eu quero. Eu tô aqui é porque eu quero. Ninguém me obrigou, não. Tem voo saindo todo dia bem daqui do Santos Dummont. Mas eu quero é reclamar mesmo porque eu tô chata e tô com saudade e quero meus filhos e quero minha casa e quero minha cama e quero meu travesseiro de pescoço que eu fiz o favor de esquecer e quero que passe essa dor nas costas e quero que passe essa dor no peito e quero parar de sentir culpa e quero aguar minha grama e quero fazer macarronada com manjericão do meu pé e quero ver os meninos andando de bicicleta e quero reclamar do Pedro que entra a noite de farda e quero ouvir o som da guitarra dele invadindo meu quarto e quero ver a filha da vizinha dando tchau pra mim na janela e quero ver aquela carrada de menino invadindo a sala pra jogar Play Station. Eu quero barulho! Quero ouvir as opiniões do Pedro, tão discordantes das minhas, mas sempre tão bem articuladas. Quero morder a língua pra não dizer que um dia ele vai ter minha idade e entender. Quero ver os três implicando uns com os outros. Quero perder a paciência e mandar eles resolverem sozinhos e me chamarem apenas quando tiver sobrado só um em pé. Quero escovar os dentes correndo pra levá-los pra escola com um enorme caneco de café do lado. Quero encarar os milhões de motos descendo da Pedra Mole de manhã cedinho. Quero disputar o som do carro com o Pedro. Quero ceder: a ida com AC/DC pra poder ouvir FM Cultura na volta. Quero perder a paciência no trânsito. Jisus! Até dirigir eu quero.
Quero, quero mesmo que o tempo passe logo, que o tempo passe rápido. Pelo menos daqui pra sexta. Depois pode passar devagar. E depois eu volto e penso no resto. Quero também que eu consiga voltar pra minha rotina que já tava tão estabelecida, tão fechadinha e metodicamente organizada aqui. Mas meu relógio comeu areia e desde segunda que o tempo não passa - não tem mais o que ler, não tem mais o que estudar. Tem muito ainda o que entender, muito mesmo, mas não tem mais cabeça, não tem mais vontade, não tem mais tesão. E né possível que todas as crianças que frequentam o aterro sejam cacheadas! Quero sexta-feira. Quero o aeroporto Petrônio Portela, Quero minha casinha no morro. Aff, que saudade é esse excesso de querer. Saudade é quando a falta excede. E excesso sempre foi meu sobrenome. Excedo, logo existo.