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sexta-feira, 30 de março de 2012

Hoje podem trocar meu café por descafeinado. Podem deixar minha TV sem áudio. Pode a chuva parar e o calor absurdo voltar. Podem até trocar meu Merlot por um Sangue de Boi. Podem me servir pequi no lugar de uma massa fresca. Eu nem me importo. Podem tirar o Chico do som do meu carro e colocar Clube da Esquina. Podem mexer no meu criado-mudo e tirar meus óculos do lugar. Podem me deixar cega, tateando pelo quarto. Podem trocar a lavanda Johnson por perfume francês daqueles bem doces. Podem trocar minhas havaianas confortáveis por sandálias salto agulha 15. Podem fazer o que quiser. Nada vai estragar meu bom humor. Não depois da notícia que eu tive. ("On, captain, my captain" - E quem disse que é preciso subir numa mesa pra mudar de perspectiva?)

segunda-feira, 26 de março de 2012

A confiança no próprio taco (ou a certeza de ser muito amado)

Zé Luiz (7) e Antonio (5)  foram passar a tarde na casa de um colega. Lá, o pai dos meninos permitiu que eles jogassem um jogo de Play Station que é proibido pra eles aqui em casa.
Zé: "Mas, mãe, tu disse que na casa das pessoas eu tenho que obedecer as regras delas. Então... O pai do Leozinho que botou GTA pra gente jogar. Eu não podia desobedecer..."
Antonio vai só repetindo e concordando com o irmão.
O caminho pra casa é longo e antes mesmo de chegar na nossa rua, eles já tinham me convencido de que podem jogar o jogo aqui, sim, desde que mude umas configurações tais pra que não seja tão violento. Mas daí eles perceberam um segundo problema: o jogo é do Pedro. E se ele não topar emprestar?
Zé Luiz, sempre mais dramático, sai com essa:
- Ah, não! A gente convenceu a mamãe e mesmo assim não vai poder jogar. O Pedro NUNCA vai deixar...
Tonton, cheio de confiança no próprio taco, me sai com essa, com sua voz rouca e seu sotaque portenho:
- Calma, Zé. Fica tranquilo que eu já sei o que fazer. EU vou pedir pro Pedro. Ele me adora porque eu sou o mais pequeno. Ele faz tudo o que eu quero. Pode deixar comigo...

sábado, 17 de março de 2012

Foi em 16 de maio do ano passado que Cristiana Guerra escreveu isso lá no Amor e Ponto. Eu li, achei lindo - como tudo o que ela escreve - mas não entendi.

Assombro.

O amor assusta porque ao nascer já anuncia: posso acabar. Pior: o amor do outro pode acabar. Ou nada disso: pode a vida e o dia e as horas serem mais fortes que qualquer impulso, e o que era um-mais-um torna-se um a um. E o que resta é cada um levando como pode o que pulsa em si.

O amor é ter a perder.

Ou não ter nada. É tudo e todo o medo e todos os perigos. Ou nada e paz. Ou nada.

O amor que nasce é assustadoramente amor. O amor que segue sozinho é assustadoramente só. Não há meio-termo porque o que o amor quer é coragem, o amor quer entrega, o amor sempre quer. Nem sempre é harmonia, nem sempre delicadeza. Mas sempre amor. Até não mais. E isso demora.

É maior que nós, o amor. Faz sombra e assusta. Até que se veja dele o seu verdadeiro tamanho. A sombra do amor assusta. Até que se entenda que ela é sombra e só.

O amor nos pede a escolha: ser do tamanho do medo ou da coragem.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Pelo dia da poesia

TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Ferreira Gullar

quinta-feira, 8 de março de 2012