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terça-feira, 20 de maio de 2014

Preguiça

Eu ando com muita, muita preguiça. É o peso dos anos, eu sei. Trinta e muitos vividos a mil. Mas não é meu corpo que se ressente desse ritmo, mas minha alma mesmo. Tenho preguiça de tudo. Me incomoda essa história de ter que conhecer pessoas, de falar com pessoas, de me deixar descobrir. As mesmas pessoas estão aqui há anos, e elas me bastam. Eu, que sempre gostei do novo, ando cada vez mais desejosa do que me é familiar.
Tenho preguiça de responder a perguntas, de ouvir respostas, de ver olhares de admiração ou espanto. Como na primeira vez que alguém me vê de óculos, e fica impressionada com o fato de eu ter 7,5 de miopia em cada olho. Ora, mas se você estivesse aqui desde sempre, saberia que uso óculos desde os 12 anos de idade, que a miopia vem da família do meu pai, que eu odeio usar óculos – não por uma questão estética, mas porque não gosto de depender deles ou das lentes de contato e tenho medo do dia em que não encontrá-los.
Se você estivesse por aqui há algum tempo saberia que durmo com os óculos embaixo do travesseiro, às vezes dentro da fronha, porque vai que tem um terremoro e eu tenho que fugir e salvar meus luizes? E saberia também que tenho pavor de acordar e não encontrar os óculos e que aqueles míseros segundos entre o abrir de olhos e o gesto de colocar os óculos no rosto concentram a maior quantidade de tensão e desespero possível. Sim, e a pergunta óbvia que vem agora é: “por que você não faz a cirurgia”, à qual eu teria que responder, já que você não está aqui desde sempre, que eu já tentei, mas por alguma razão a anatomia do meu olho não permite que a tal cirurgia tenha efeito em mim. E, sim, se você estivesse aqui desde sempre saberia também que eu colocava nomes masculinos nos meus óculos, mas todos com Z: tive o Zózimo, o Ziraldo, o Zaratrusta, etc. A mania de nomear os óculos passou, mas continuo nomeando objetos, porque acho que a vida fica mais divertida assim. E eu não teria que te explicar que depois que descobri que Chico Buarque tem essa mesma mania pulei de alegria porque afinal tenho algo em comum com aquele que eu sempre fantasiei ser o homem da minha vida.
E quanto tempo se gasta pra se explicar tanta coisa? Pois é. Muita, muita preguiça. A volta no quarteirão que eu dou antes de chegar no meu destino, caso esteja passando uma música que eu gosto – porque as melhores músicas sempre começam quando a gente tem que parar o carro. Mas isso você só entenderia se estivesse por aqui há um tempo. E eu tenho muita, muita preguiça de me explicar. E principalmente preguiça da previsibilidade das reações que encontro.
Não tem conversa que faça ninguém entender como alguém pode ser tão absolutamente destemida pra tudo mas se trema de pavor ao ver um determinado tipo de flor. E, na verdade, essa é uma pegadinha: não é pra ser entendido. Se você estivesse aqui desde sempre saberia que eu não discuto sobre esse medo, mas espero que meu pavor seja respeitado e não ridicularizado. Tem tantas outras coisas que só quem está aqui desde sempre sabe, porque viveu comigo, porque entendeu sem ter que ser explicado, porque sabe de onde eu vim, e divide a deliciosa dúvida de pra onde mesmo vamos todos nós.
Sim, faz um calor desgraçado, mas eu só durmo de lençol. Porque sem me cobrir me sinto desprotegida, e a hora do sono é sempre a pior do dia pra mim. Eu tenho uma dificuldade enorme pra dormir e também pra me manter dormindo. Eu tenho pesadelos. Ou então sonhos bons, mas intensos demais, que me deixam cansada e triste e ressacada ao acordar. Meus sonhos têm muitas cores e sons, e eu acordo pra uma vida que exige de mim uma postura preto no branco. E até hoje tenho vontade de bater minha cabeça na parede pra parar de pensar. Mas você não entenderia nada disso, porque, pra quem é novo, o outro acabou de nascer. E, ai, já faz tanto tempo que pelejo por aqui que me dá preguiça de explicar de onde vem esses meus gestos e atitudes, que foram construídas por tantas situações, tantas pessoas, tantas gargalhadas.
Sim, eu tenho um sorriso enorme, eu mostro as gengivas, mas também tenho o mau humor mais mau humorado do mundo. Eu sou capaz de azedar leite só de olhar nos dias em que tô virada no cão. Eu fico insuportável e choro porque nem eu me aguento quando sinto dor na alma. E tenho um monte de amigos que me escutam e não acreditam que eu possa ser tão absurdamente boba e dramática assim. Mas eles estão aqui desde sempre e eu nunca preciso explicar os porquês. E esse é o melhor travesseiro pra uma cabeça cheia e uma alma triste.
Eu sempre como o miolo do pão antes. Eu gosto de pizza gelada na manhã da segunda-feira. Eu vivo esquecendo refeições. Eu assisto TV, trabalho, navego e bato papo na internet - tudo ao mesmo tempo agora. E funciono melhor assim. Eu gosto de gatos porque eles são independentes e não se jogam aos pés do dono como cachorros. Eu gosto de cozinhar mas não tenho feito isso muito, não. Eu sinto muito frio, sempre. Mas eu gosto de calor.
Mas você teria que aprender tudo isso, e o exato peso de cada uma dessas pequenas idiossincrasias. E eu tenho muita preguiça de explicar. Seria preciso que você estivesse aqui desde sempre. E seria preciso que eu soubesse me comunicar, o que aliás eu faço muito mal. E você entenderia que essa minha fissura por aprender línguas é reflexo direto da minha vontade de melhor comunicar. Porque eu sei que é preciso buscar em cada palavra o sentido exato, ou buscar, pra cada mínima coisa que se quer dizer, a palavra que lhe traduz, e pra isso é preciso que eu busque em todas as línguas disponíveis, pra que aquilo que eu digo seja não só que eu sinto, mas também seja decodificaco pelo outro como exatamente o que está dentro de mim. Eu quero sintonia. É isso. É por isso que tento aprender línguas. É por isso também que gesticulo tanto, com minhas mãos enormes, tentanto me fazer entender. E é difícl entender, se você chegou agora, que meus gestos são grandes e minhas expressões exageradas exatamente porque sempre me faltam as palavras, mesmo que isso pareça paradoxal, já que eu falo tanto.
Mas você não estava aqui e não tem a menor ideia. E eu tenho toda a preguiça do mundo.