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domingo, 8 de agosto de 2010

Dia do meu pai


A rede do meu pai não é uma só: ao longo da minha vida lembro dele deitado sempre na mesma posição, em redes de cores diferentes, e quase sempre com a varanda de croché rasgada porque ele tem mania de colocar dois dedos dentro do croché e puxar. Caboco do interior do Piauí, nunca se acostumou com cama, e tem um jeito todo dele de deitar na rede: sempre por cima de um braço, e usando o outro pra balançar a rede. Tem uma sensação de tranquilidade que me dá ouvir o barulho da rede balançando, o ranger dos armadores: "o papai tá em casa".
Dentro da rede, uns três lençóis, embora ele não goste de se cobrir. E tem sempre um lençol fininho que ele coloca no rosto na hora de dormir. O cheiro desse lençol é o cheiro do meu pai: nicotina, suor, sei lá. É um cheiro que só ele tem. Quando eu era criança e ele tava viajando, eu matava a saudade dormindo na rede dele e colocava o lençol na cara pra dormir embalada por seu cheiro. Até hoje tenho o hábito quase automático de cheirar o lençol dele quando chego em sua casa.
Era embaixo da rede que eu gostava de deitar pra fazer tarefa da escola, quando era criança. O chão frio do quarto, meus livros e cadernos, e volta e meia eu pedia que ele me ajudasse em alguma questão. Quando eu já era adolescente, ele gostava de me falar sobre história, os conflitos entre judeus e palestinos, a ditadura militar brasileira - sempre deitado na rede, enquanto eu escutava e pensava que ele era tão egoísta de não dividir mais disso com a gente.
Ele nem sabe que o verme do jornalismo nasceu em mim por conta dele. Primeiro, porque ele gostava de ler o que eu escrevia, e me incentivava a escrever sempre. Segundo, por conta de uma greve das universidades federais nos anos 80. Dia após dia, eu o via deitado na rede assistindo ao Jornal Nacional, e se irritando a cada dia mais porque Cid Moreira e Sérgio Chapelin não davam a notícia da greve. Vendo sua revolta, eu, que devia ter uns 6 ou 7 anos, perguntei porque importava que a greve fosse noticiada. "Porque se as pessoas não sabem é como se não estivesse acontecendo, ora!" (Olha o Habermas e a esfera pública aí, minha gente!) Pronto: daí resolvi que eu queria decidir o que as pessoas precisam saber, e acabei sendo jornalista. (Pra imenso desgosto dele que insiste que minha natureza brigona seria uma grande vantagem numa advogada ou que meu idealismo seria útil numa carreira política).
Meu pai nunca foi um pai Gelol, que gostava de participar. Nem lembro se alguma vez brincamos juntos. Mas a rede dele pra mim é até hoje minha rede de proteção - nunca caí sem que ele tivesse embaixo pra aparar. Nos momentos em que o mundo ficou grande demais, difícil demais, doído demais, ele tinha uma ou duas de suas econômicas palavras pra dizer. E talvez por falar tão pouco, suas palavras têm sempre esse peso de verdade absoluta. E seu amor por mim me convence de que eu mereço as coisas com as quais eu sonho, porque ele tem absoluta certeza do que eu mereço, mesmo quando eu não tenho.

2 comentários:

João Olicar disse...

sem comentarios, adoro seus textos
bjo

Iramaia disse...

Amiga, que eu adoro as coisas que tu escreves, tu já sabes. Que algumas até me emocionam, não sei se disse, mas emocionam sim. Mas essa, falando do teu pai, foi sem noção!